domingo, 26 de novembro de 2017

Aconteceu em Novembro de 75



"Queremos o socialismo, sim, mas não o da Suécia, da Noruega ou da Holanda,  o socialismo que queremos é da República Democrática Alemã, da Polónia,da Bulgária, da Roménia ...", podia ler-se no Boletim Oficial do Movimento das Forças Armadas, da autoria da V Divisão do Estado-Maior da tropa, durante o Verão Quente de 1975. 
Chegado a este ponto sem retorno, os oficiais "moderados" foram obrigados a organizar-se e a estabelecer um plano de acção para retirar o poder à extrema-esquerda comunista, cujo braço armado era o tristemente célebre COPCON do brigadeiro Otelo Saraiva de Carvalho e os SUV (Soldados Unidos Vencerão), uns grupelhos de soldados mascarados de bolcheviques e com juramentos de bandeira de punho direito erguido e loas ao "socialismo". 
Eu, pela minha parte, já andava pelos cabelos com aqueles revolucionários de meia-tigela e a asfixia democrática vermelha que afectava como uma praga Portugal de Rio Maior para sul. Não foram raras as vezes em que fui buscar soldados meus detidos pela cobarde e pérfida Polícia Militar ao Regimento de Lanceiros 2, na Calçada da Ajuda, e na maioria do casos trouxe-os de volta à nosso unidade desfigurados pelas agressões bárbaras que eram cometidas, não só aí mas também no RAL 1 (Lisboa), no primeiro caso por ordem dos tiranetes major Tomé e major Campos de Andrada e no segundo caso o coronel Leal de Almeida. Quantas vezes apertei com força a coronha da minha Walther P-38, a pistola de serviço de escolta que usava nesses momentos, com a raiva de não a poder usar mesmo ali naquele ninho de víboras militares-social-comunistas e vingar os meus soldados maltratados. 
Em Setembro, o general Vasco Gonçalves deixou de fazer a triste figura de primeiro-ministro  e foi substituído pelo almirante Pinheiro de Azevedo. A situação político-militar, apesar da mudança, degradava-se de semana a semana. Até que chegou a altura de cada facção contar as armas e partir-se para a acção. A rotura era total e a guerra civil era uma perspectiva a levar em conta. 
No Depósito de Material de Guerra, em Moscavide, um tal capitão Saraiva surripiou uns milhares de G-3 e algumas foram distribuídas por vários bandos entre os quais a Intersindical. O PCP controlava os Fuzileiros e Álvaro Cunhal incendiava os ânimos comunistas com tiradas eloquentes. Otelo incentivava o COPCON, onde, entre os muros,  se cometiam crimes ao nível dos praticados pela PIDE antes do 25 de Abril. 
Na hora H, atribuiram-me uma missáo: inutilizar o canhão 88 postado no viaduto sobre a minúscula auto-estrada Lisboa-Vila Franca de Xira. Antes de chegarmos ao objectivo pela calada da noite recebo uma mensagem que afinal o RALIS  se rendia às forças do tenente-coronel Ramalho Eanes. Passara-lhes por completo o ardor revolucionário. No emaranhado de reuniões e comunicações entre unidades, partidos políticos e o Presidente da República, general Costa Gomes, as movimentações acontecem em cadeia. Mário Soares e uns quantos socialistas fogem para o Porto, Álvaro Cunhal sai de cena e o brigadeiro Otelo refugia-se em casa... 
Duas companhias de pára-quedistas chegadas do Ultramar recusam-se a alinhar com os companheiros que tomaram as bases e passam imediatamente â disponibilidade. Os Comandos do coronel Jaime Neves assaltam os "páras" rebeldes, na esmagadora maioria praças, alguns sargentos e apenas um oficial, que estavam entricheirados no GDACI, em Monsanto. Também eles perderam o fervor revolucionário e não deram luta. Na manhá do dia 26 é o assalto dos Comandos ao famigerado antro de cobardes da Polícia Militar. O tenente Coimbra e o furriel Pires são vítimas mortais, nas nossas forças, do fogo traiçoeiro pelas costas oriundo das casernas deCavalaria 7, situadas no lado esquerdo da Calçada da Ajuda. Na parada de Lanceiros 2 tomba um militar e uma Chaimite arromba o portão. 
O coronel Jaime Neves eleva a sua autoridade ao máximo e consegue evitar que a vingança pela morte dos dois graduados "comandos" seja levada a cabo. A dicotomia revolucionários-moderados acabava ali e a democracia ocidental estava salva das garras do totalitarismo social-comunista. Lisboa, Setúbal e Barreiro eram sobrevoados por aviões F-86F que assinalavam o ponto final no marxismo. 
Ainda hoje se discute acaloradamente o que aconteceria se o COPCON e os Fuzileiros e as restantes unidades simpatizantes do socialismo do Leste europeu não tivessem recolhido às casernas. Que haveria uma guerra civil generalizada não duvido. Porém também não seria difícil prever o desfecho. O "nosso" lado estava dispunha de forças muito mais poderosas: Escola Prática de Cavalaria, Escola Prática de Infantaria, Escola Prática de Artilharia, Regimento de Comandos, Regimento de Cavalaria de Estremoz, Regimento de Cavalaria de Braga, Regimento de Cavalaria de Santa Margarida, Força Aérea, etc. 
Já lá vão 42 anos e desde então as armas calaram-se. Sõ as usei depois para instrução ou serviço. Saudades? Tenho. Dos meus vinte e poucos anos de então. Só!

sábado, 25 de novembro de 2017

As inundações de 1967 e os incêndios de 2017

Há precisamente 50 anos, também um sãbado, mais ou menos por esta hora (17h00) , caía em Lisboa a popularmente chamada chuva "molha tolos". Persistente num cenário cinzento e normal naquela época do ano. Horas mais tarde, quando me dirigia para o pavilhão desportivo do Campo de Ourique para assistir aos jogos de andebol do campeonato regional da I divisão, já as bátegas eram bastante mais fortes mas ainda longe de algo de anormal. Entrei no pavilhão para junto da claque do Passos Manuel (o liceu tinha equipas de andebol que disputavam as provas oficiais da associação e da federação) e vibrámos com o encontro e o apoiámos fervorosamente o nosso ALPA. 
Findos os jogos da jornada já para lá da meia-noite, eu e uns amigos fomos até uma casa de petiscos perto do pavilhão, "Os Passarinhos", e quando de lá saímos "molhados" com umas canecas de cerveja e uns "piú-piús lá para as 02h00 da madrugada o céu abria-se em cascata e as ruas eram leitos caudalosos que as sargetas não conseguiam sugar e absorver. A corrente intensa da Rua João XXI  desaguava no Largo do Rato com violência e daí seguia impetuosa pela Rua de S.Bento. 
Chegados ao Jardim do Príncipe Real, o temporal dispersou-nos e cada um seguiu para sua casa. Já na cama, no último andar de um prédio na Rua Eduardo Coelho, ouvia a chuvada bater com estrondo nas telhas e nas vidraças das janelas. Ao almoço, recordo-me de umas vagas referências a inundações, mas à tarde saí para ir jogar matraquilhos e bilhar para o Jardim Cinema e não me recordo de grandes comentários às cheias que por essa altura já tinham ceifado a vida a centenas de pessoas. 
Só me apercebi verdadeiramente da dimensão da tragédia na segunda-feira, no Liceu Passos Manuel, onde a rotina das aulas se alterara em função da mortandade na zona da capital. O reitor, professores, alunos e contínuos contavam as suas experiências pessoais abertamente, sem receios dos "bufos" da PIDE que por lá existiam, e que nós sabíamos quem eram, mas não ligávamos muito a esses personagens porque o Liceu Passos Manuel era bastante rebelde no seu comportamento perante as autoridades e tanto andavamos à pedrada com a PSP  no largo anexo à igreja das Mercês como assobiavamos os veículos da GNR que atravessavam a rua em frente ao edifício escolar para entrarem nas traseiras do quartel dos Paulistas. 
Não sei de quem partiu a iniciativa, mas muito rapidamente os professores começaram a solicitar aos alunos voluntários para irem ajudar as autoridades nas zonas afectadas pelas cheias. Penso que quase toda a rapaziada com mais de 14 anos alinhou imediatamente nessa tarefa. Eu tinha, nessa época, 16 anos e fui com o meu grande amigo (precocemente falecido) Castanheira para Algés, onde deparámos com um cenário dantesco. Água, lama, destroços até ao primeiro andar dos prédios na rua da linha dos eléctricos e na avenida marginal. Chafurdámos por ali durante dias em caves imundas, recolhendo animais mortos e ajudando a carregar vítimas embrulhadas em cobertores enlameados para viaturas que seguiam para a morgue do Instituto de Medicina Legal. Por volta do meio-dia apareciam umas senhoras que nos davam uma sandes de "qualquer coisa" e uma gasosa. 
Mais que o silêncio dos mortos incomodava-nos, sobretudo, o pranto do vivos sobreviventes ou os rostos sem expressáo de quem ficara vazio de bens e sentimentos.  
Leio agora, passados todos estes anos, que as autoridades abandonaram as vítimas e quiseram esconder a "maior tragédia em Lisboa desde o terramoto de 1755". É mentira! Eu vi polícias, guardas republicanos, bombeiros, médicos, enfermeiros, soldados, empregados da Carris, da CP, dos CTT, estudantes, professores, anónimos, todos unidos para livrar a zona de Lisboa daquele armagedão inesperado. 
É óbvio que existia a Censura, como existe em todos os países que estão em guerra e Portugal combatia no Ultramar, mas, mesmo com o lápis azul o "Diário de Lisboa" titulava, como se pode ver na foto acima, "centenas de mortos". Muitas zonas da cidade eram precárias. É verdade. Mas o maior bairro de lata da Europa situava-se em Paris, na democrática e evoluída França, e era habitado por centenas de milhar de ... portugueses. 
Como poderia Salazar esconder do Povo semelhante tragédia se este mesmo Povo fazia excursões aos milhares para visitarem as zonas atingidas pelo temporal mortífero. Satisfaziam a curiosidade mas não ajudavam. Nem uma pedrinha afastavam do caminho. Esconder as cheias de 1967 era como os americanos esconderem o ataque às torres gémeas, em Nova Iorque. Impossível.
E naquele tempo não havia o SIRESP nem a imensa frota de veículos dos bombeiros como a que combateu os fogos de Pedrógão Grande, em Junho, ou de todo o centro do país, em Outubro, com os trágicos resultados que se conhecem. Não houve, então, um Presidente da República que, entre lágrimas, beijos e abraços mentiu aos portugueses, referindo que "foi feito tudo o que se podia fazer", houve, sim, um Presidente da República que visitou, de cara fechada, todas as zonas alagadas. Era almirante e chamava-se Thomaz. 
E neste disputa ditadura-democracia em tempos de luto nacional parece que a "censura da liberdade" recusa-se a tornar público o capítulo VI do Relatório dos Incêndios de Pedrógão Grande. Porque será?